Longe de ser considerada a obra perfeita da criação,
atribuída a um deus, por várias religiões na antiguidade, o homem é um ser
juncado por mil defeitos, uma cópia autêntica do demiurgo que providenciou sua
gênese: ele próprio! Além da
imperfeição que é o traço característico de sua índole é totalmente desprovido
de valores éticos e literalmente fascinado pelo múnus, pelos eflúvios do poder
e facilmente alienável. Nesse sentido, a santa
Inquisição da Igreja Cristã soube explorar-lhe o ponto fraco
transformando-o em aliado, em suas maquinações e nas abominações que
perpetrava.
Pois bem: se os judeus foram responsáveis pela
condenação de Jesus, o mito cristão, eles estavam em débito com toda a
cristandade. Era uma lógica rota mais funcionava, pois aí, como justificar a
tortura e o suplício de tantos homens e garantir platéia para assistir a esses
acontecimentos lúgubres. Assim, o script foi
seguido à risca, a ofensa socializada, a massa transformada numa grande torcida
fanatizada, enquanto o suplício passou a ser obrigatoriamente aplaudido. O
último suspiro da pobre vítima era ovacionado com um berro animalesco; o grito de gol, que ora ocorre nos
estádios de futebol, por ocasião do encontro entre times do coração.
O circo romano ou a luta entre bárbaros era totalmente
díspar do espetáculo proporcionado pela Igreja, pois no primeiro ninguém sabia
quem seria o vencedor, ainda existindo o polegar
para cima do imperador distribuindo clemência e prestigiando a plebe.
Somente, as touradas espanholas, e outras mais realizadas em países onde essa
prática é adotada tinham algo em comum com os finais sangrentos dos autos-de-fé, pois o touro não era
poupado. Mesmo matando o toureiro, o que muito raramente ocorre é imolado em
nome do deus da folia, do primitivismo, olé!
No picadeiro cristão só existia uma torcida, o
vencedor era um só e declarado de véspera, não havendo chances de perdão, e
ainda, perigo de vida, se o expectador demonstrasse simpatia pela pobre vítima.
Ao contrário dos COLISEUS pelo mundo antigo, onde gladiadores fortes saudavam a
ralé inquieta e escolhiam as armas, imediatamente dividindo as preferências
entre os expectadores, os pobres condenados pela santa Inquisição vinham cabisbaixos, constrangidos, amarrados,
alquebrados e clamando pela morte, pois ninguém
é santo, de ferro ou de bronze!
O filósofo e matemático Giordano Bruno foi trazido à
fogueira, com um pedaço de madeira enfiado na boca e pregos a perfurar-lhe a
língua. O estudante de direito Pompônio Augério foi cozido numa grande tina
contendo piche, óleo e aguarrás (por que
essa mistura?), e somente arrancou o grito
de gol dos sectários da Igreja, após 15 minutos de sofrimento atroz.
Por ocasião do suplício de uma família (Perrotine Massy e suas filhas), uma das
infelizes (a filha mais nova) pariu sobre o braseiro e com os pés chutou sua cria pra fora, numa tentativa
de dá-la à vida. Todavia, a criança recolhida por um algoz foi devolvida ao
fogo, pois a massa estava aparelhada pela Igreja e inexoravelmente um possível
salvador do nenê queimaria junto a ele no próximo auto-de-fé, proporcionando a plebe o grito de gol integral, que lhe fora impedido no simulacro anterior. Esse ato de extrema
selvageria e crueldade foi relatado por Victor Hugo, no livro Homens do Mar.
William Shakespeare, o grande mito ou pseudônimo de
alguém avesso a fama captou magistralmente essa carência mórbida da massa e
proporcionou espetáculos da mais pura tragédia humana, impregnados das
vicissitudes da vida e de finais fortes, com sangue e mortes, ou bem ao gosto
da sociedade. Marco Antônio e Cleópatra, Romeu e Julieta e Sonho de uma noite
de verão, com toda a certeza arrancaram urras, berros e o grito de gol, de torcidas exasperadas, noite após noite ou quando
eram encenados.
De um modo geral os famigerados autos-de-fé tinham início em alguma capela ou catedral e
dirigiam-se a uma praça ou adro, onde uns raros sobreviventes mutilados e
previamente depenados (de suas roupas
caras, jóias, dinheiro em espécie, móveis de luxo, imóveis e semoventes) eram
humilhados, enquanto o maior número queimaria na fogueira, em nome de deus, de
seu filho Jesus e pela glória da doutrina. Geralmente, os dias de festa na
comunidade eram escolhidos para esses eventos macabros, na ocasião em que
populacho e nobreza eram nivelados, a
fim de testemunharem a força da Igreja, através de torturas de última hora e,
conseqüentemente, com a execução das vítimas.
Os aparelhos e ferramentas utilizados no suplício,
atualmente, expostos em diversos museus pelo mundo, mesmo distante no tempo
causam mal estar nas pessoas honestas, que olhando bem para eles imaginam o estupor
das vítimas, as súplicas dos torturados e a macilência dos condenados, no
momento angustiados e estropiados por tanto sofrimento. A imponência e
bizarrice muda e imóvel desses instrumentos, além do medo, também causam
revolta, principalmente quando se afirma que tudo era feito em nome de deus e
pela salvação da alma (afinal, salvar de
quê? ...de quem? ...e salvar pra quê?). Tudo
mentira e pura malandragem!
Na visão deste Autor e descartando-se a impressão
horripilante que tal parafernália diabólica (mas bem ao gosto da Igreja) causava nas pessoas que respeitam as
leis da vida, havia penalidades que acabavam de vez com a mínima dúvida que o
cidadão tivesse, a respeito da honorabilidade do cristianismo. Convenhamos;
aproveitar-se duma condição transitória de poder e múnus, obrigando pessoas
fragilizadas pelo terror da morte a comer excrementos humanos (fezes)
é algo que foge a qualquer concepção civilizada, honesta e racional. Esse tipo
de pena ultrapassa todas as demais, pelo cinismo e a falta de respeito pelo
gênero humano, uma espécie de genocídio
moral. O inquisidor Bernardus
Guidonis, salvo engano deveria ter uma boa justificativa para aconselhar
tamanha barbaridade nos seus escritos e na sua grande experiência de exímio
explorador do sofrimento alheio.
Como a guarda de todos os processos referentes à santa Inquisição é uma atribuição do
Vaticano, que recentemente liberou uma pequena parcela para conhecimento
público, dificilmente uma sentença desse tipo escapará a uma acurada triagem
que deve acompanhar a essa liberação
gota-a-gota. Seguro morreu de velho, e não se dar murro em ponta de faca! Entretanto,
se naquelas laudas que embrulhavam peixes nos mercados parisienses (conferir no ensaio Instantâneos de
Perversidade), alguém tivesse a curiosidade de examinar tão apurada
caligrafia, ou num autêntico vacilo nesse processo de libertação da papelada, através da Igreja, uma dessas sentenças
chegasse a conhecimento público, o espanto daria lugar a repulsa, mas poderia
terminar num riso amargo ou máscara de dor, pois não se trata de um assunto
sério, muito pelo contrário, é loucura e sadismo.
Convenhamos: humilhar um homem obrigando-o a comer
fezes humanas é um procedimento tão cruel que foge a qualquer parâmetro ou
referencial responsável. Com toda a certeza isso jamais foi constatado no submundo
do crime (entre Al Capone e as quadrilhas mais violentas da Máfia ou outras facções
perversas) ou passou pela cabeça do kzar Ivan, o terrível considerado um ente desalmado, mas que talvez, nunca foi
assaltado por tamanha ignomínia, falta de caridade e de temor a esse deus
gaiato e cruel.
Como essas condenações
existiram, sendo bastante estimuladas através de predadores desalmados e experts na tortura e criadores de manuais a serviço da santa Inquisição, este Autor gostaria de
saber de algum teólogo católico, de pesquisadores simpáticos a doutrina, ou
mesmo de fiéis seguidores cristãos como era registrada e imposta uma condenação
tão execrável e atualmente minimizada, esquecida, e talvez considerada boa.
1) Quando a ingestão de fezes
fazia parte do castigo, por acaso esse termo era substituído por algum
eufemismo, ou não?
2) Quando os inquisidores optavam
por tal castigo, a sentença fazia alguma alusão a Cristo ou aos santos
Evangelhos?
3) A sentença com o castigo ou a
ordem de comer fezes era lida solenemente, numa Igreja, ou feita às escondidas
do público?
4) Até que ponto a ingestão de
fezes exercia alguma influência no arrependimento do herege e na salvação de
sua alma?
5) As fezes eram coletadas a esmo,
ou provenientes da pança santificada do papa, de algum bispo ou inquisidor
iluminado?
6) Em se tratando de algo
asqueroso, mas, as fezes eram servidas em prato, o infeliz comia de joelhos ou
de 4 pés, feito animal?
7) A quantidade de excremento era
fixa, ou variava de acordo com o pecado, a classe social e a idade da pobre
vítima?
8) Os judeus castigados através
desse método faziam jus a uma porção extra, pelo envolvimento da raça na morte
de Jesus?
9) A feiticeira boa e a bruxa má
eram tratadas igualitariamente, ou havia alguma distinção (dois pesos, duas
medidas), por ocasião dessa "apoteose” ou no momento da ingestão de fezes?
10)
A partir de que momento os inquisidores descobriram que as fezes tinham
grande afinidade com a tortura de hereges?
11) Esse castigo era o "prato" principal, no vasto cardápio
de monstruosidades, ou seria apenas uma simples "entrada"?
12)
Na condição de chefe da Igreja e responsável pelo funcionamento da santa
Inquisição, Sua Santidade o papa tinha alguma ingerência na aplicação técnica
desse castigo, ou como as demais práticas, o considerava um costume louvável,
salutar?
É triste descer-se a tal nível, mas, a realidade é
essa, onde o culpado, na época e agora, continua sendo quem denuncia tão grande
depravação e o esgarçamento do tecido social de forma irreversível. Destarte, e
por incrível que pareça os simpatizantes e adeptos do cristianismo, ao invés de
chocados com tamanho descalabro, indubitávelmente sairão a campo desautorizando
a informação, achando-a agressiva a uma doutrina
santa, e algo totalmente fora de propósito na atualidade. Isso tem sido
assim, e na impossibilidade de utilizar-se da crueldade e intolerância, assim
como o fizeram Clemente XI e Clemente
XII matando a Gaetano Volpini e Enrico Trivelli por motivos fúteis, apenas dão
de ombros misturando imprecações com jaculatórias. Uau!
NOTA: Esse
ensaio faz parte do Volume III (ANATOMIA DE UMA FARSA, 596 páginas)
da trilogia: JESUS E O CRISTIANISMO, a venda através do email: josepereiragondim@hotmail.com