sexta-feira, 21 de outubro de 2011

CINISMO E PERVERSIDADE: FEZES NA IGREJA



Longe de ser considerada a obra perfeita da criação, atribuída a um deus, por várias religiões na antiguidade, o homem é um ser juncado por mil defeitos, uma cópia autêntica do demiurgo que providenciou sua gênese: ele próprio! Além da imperfeição que é o traço característico de sua índole é totalmente desprovido de valores éticos e literalmente fascinado pelo múnus, pelos eflúvios do poder e facilmente alienável. Nesse sentido, a santa Inquisição da Igreja Cristã soube explorar-lhe o ponto fraco transformando-o em aliado, em suas maquinações e nas abominações que perpetrava.

Pois bem: se os judeus foram responsáveis pela condenação de Jesus, o mito cristão, eles estavam em débito com toda a cristandade. Era uma lógica rota mais funcionava, pois aí, como justificar a tortura e o suplício de tantos homens e garantir platéia para assistir a esses acontecimentos lúgubres. Assim, o script foi seguido à risca, a ofensa socializada, a massa transformada numa grande torcida fanatizada, enquanto o suplício passou a ser obrigatoriamente aplaudido. O último suspiro da pobre vítima era ovacionado com um berro animalesco; o grito de gol, que ora ocorre nos estádios de futebol, por ocasião do encontro entre times do coração.

O circo romano ou a luta entre bárbaros era totalmente díspar do espetáculo proporcionado pela Igreja, pois no primeiro ninguém sabia quem seria o vencedor, ainda existindo o polegar para cima do imperador distribuindo clemência e prestigiando a plebe. Somente, as touradas espanholas, e outras mais realizadas em países onde essa prática é adotada tinham algo em comum com os finais sangrentos dos autos-de-fé, pois o touro não era poupado. Mesmo matando o toureiro, o que muito raramente ocorre é imolado em nome do deus da folia, do primitivismo, olé!

No picadeiro cristão só existia uma torcida, o vencedor era um só e declarado de véspera, não havendo chances de perdão, e ainda, perigo de vida, se o expectador demonstrasse simpatia pela pobre vítima. Ao contrário dos COLISEUS pelo mundo antigo, onde gladiadores fortes saudavam a ralé inquieta e escolhiam as armas, imediatamente dividindo as preferências entre os expectadores, os pobres condenados pela santa Inquisição vinham cabisbaixos, constrangidos, amarrados, alquebrados e clamando pela morte, pois ninguém é santo, de ferro ou de bronze!

O filósofo e matemático Giordano Bruno foi trazido à fogueira, com um pedaço de madeira enfiado na boca e pregos a perfurar-lhe a língua. O estudante de direito Pompônio Augério foi cozido numa grande tina contendo piche, óleo e aguarrás (por que essa mistura?), e somente arrancou o grito de gol dos sectários da Igreja, após 15 minutos de sofrimento atroz.

Por ocasião do suplício de uma família (Perrotine Massy e suas filhas), uma das infelizes (a filha mais nova) pariu sobre o braseiro e com os pés chutou sua cria pra fora, numa tentativa de dá-la à vida. Todavia, a criança recolhida por um algoz foi devolvida ao fogo, pois a massa estava aparelhada pela Igreja e inexoravelmente um possível salvador do nenê queimaria junto a ele no próximo auto-de-fé, proporcionando a plebe o grito de gol integral, que lhe fora impedido no simulacro anterior. Esse ato de extrema selvageria e crueldade foi relatado por Victor Hugo, no livro Homens do Mar.

William Shakespeare, o grande mito ou pseudônimo de alguém avesso a fama captou magistralmente essa carência mórbida da massa e proporcionou espetáculos da mais pura tragédia humana, impregnados das vicissitudes da vida e de finais fortes, com sangue e mortes, ou bem ao gosto da sociedade. Marco Antônio e Cleópatra, Romeu e Julieta e Sonho de uma noite de verão, com toda a certeza arrancaram urras, berros e o grito de gol, de torcidas exasperadas, noite após noite ou quando eram encenados.

De um modo geral os famigerados autos-de-fé tinham início em alguma capela ou catedral e dirigiam-se a uma praça ou adro, onde uns raros sobreviventes mutilados e previamente depenados (de suas roupas caras, jóias, dinheiro em espécie, móveis de luxo, imóveis e semoventes) eram humilhados, enquanto o maior número queimaria na fogueira, em nome de deus, de seu filho Jesus e pela glória da doutrina. Geralmente, os dias de festa na comunidade eram escolhidos para esses eventos macabros, na ocasião em que populacho e nobreza eram nivelados, a fim de testemunharem a força da Igreja, através de torturas de última hora e, conseqüentemente, com a execução das vítimas.

Os aparelhos e ferramentas utilizados no suplício, atualmente, expostos em diversos museus pelo mundo, mesmo distante no tempo causam mal estar nas pessoas honestas, que olhando bem para eles imaginam o estupor das vítimas, as súplicas dos torturados e a macilência dos condenados, no momento angustiados e estropiados por tanto sofrimento. A imponência e bizarrice muda e imóvel desses instrumentos, além do medo, também causam revolta, principalmente quando se afirma que tudo era feito em nome de deus e pela salvação da alma (afinal, salvar de quê? ...de quem? ...e salvar pra quê?). Tudo mentira e pura malandragem!

Na visão deste Autor e descartando-se a impressão horripilante que tal parafernália diabólica (mas bem ao gosto da Igreja) causava nas pessoas que respeitam as leis da vida, havia penalidades que acabavam de vez com a mínima dúvida que o cidadão tivesse, a respeito da honorabilidade do cristianismo. Convenhamos; aproveitar-se duma condição transitória de poder e múnus, obrigando pessoas fragilizadas pelo terror da morte a comer excrementos humanos (fezes) é algo que foge a qualquer concepção civilizada, honesta e racional. Esse tipo de pena ultrapassa todas as demais, pelo cinismo e a falta de respeito pelo gênero humano, uma espécie de genocídio moral. O inquisidor Bernardus Guidonis, salvo engano deveria ter uma boa justificativa para aconselhar tamanha barbaridade nos seus escritos e na sua grande experiência de exímio explorador do sofrimento alheio.

Como a guarda de todos os processos referentes à santa Inquisição é uma atribuição do Vaticano, que recentemente liberou uma pequena parcela para conhecimento público, dificilmente uma sentença desse tipo escapará a uma acurada triagem que deve acompanhar a essa liberação gota-a-gota. Seguro morreu de velho, e não se dar murro em ponta de faca! Entretanto, se naquelas laudas que embrulhavam peixes nos mercados parisienses (conferir no ensaio Instantâneos de Perversidade), alguém tivesse a curiosidade de examinar tão apurada caligrafia, ou num autêntico vacilo nesse processo de libertação da papelada, através da Igreja, uma dessas sentenças chegasse a conhecimento público, o espanto daria lugar a repulsa, mas poderia terminar num riso amargo ou máscara de dor, pois não se trata de um assunto sério, muito pelo contrário, é loucura e sadismo.

Convenhamos: humilhar um homem obrigando-o a comer fezes humanas é um procedimento tão cruel que foge a qualquer parâmetro ou referencial responsável. Com toda a certeza isso jamais foi constatado no submundo do crime (entre Al Capone e as quadrilhas mais violentas da Máfia ou outras facções perversas) ou passou pela cabeça do kzar Ivan, o terrível considerado um ente desalmado, mas que talvez, nunca foi assaltado por tamanha ignomínia, falta de caridade e de temor a esse deus gaiato e cruel.

       Como essas condenações existiram, sendo bastante estimuladas através de predadores desalmados e experts na tortura e criadores de manuais a serviço da santa Inquisição, este Autor gostaria de saber de algum teólogo católico, de pesquisadores simpáticos a doutrina, ou mesmo de fiéis seguidores cristãos como era registrada e imposta uma condenação tão execrável e atualmente minimizada, esquecida, e talvez considerada boa.


1)   Quando a ingestão de fezes fazia parte do castigo, por acaso esse termo era substituído por algum eufemismo, ou não?
2)   Quando os inquisidores optavam por tal castigo, a sentença fazia alguma alusão a Cristo ou aos santos Evangelhos?
3)   A sentença com o castigo ou a ordem de comer fezes era lida solenemente, numa Igreja, ou feita às escondidas do público?
4)   Até que ponto a ingestão de fezes exercia alguma influência no arrependimento do herege e na salvação de sua alma?
5)   As fezes eram coletadas a esmo, ou provenientes da pança santificada do papa, de algum bispo ou inquisidor iluminado?
6)   Em se tratando de algo asqueroso, mas, as fezes eram servidas em prato, o infeliz comia de joelhos ou de 4 pés, feito animal?
7)   A quantidade de excremento era fixa, ou variava de acordo com o pecado, a classe social e a idade da pobre vítima?
8)   Os judeus castigados através desse método faziam jus a uma porção extra, pelo envolvimento da raça na morte de Jesus?
9)   A feiticeira boa e a bruxa má eram tratadas igualitariamente, ou havia alguma distinção (dois pesos, duas medidas), por ocasião dessa "apoteose” ou no momento da ingestão de fezes?
10)  A partir de que momento os inquisidores descobriram que as fezes tinham grande afinidade com a tortura de hereges?
11)  Esse castigo era o "prato" principal, no vasto cardápio de monstruosidades, ou seria apenas uma simples "entrada"?
12)  Na condição de chefe da Igreja e responsável pelo funcionamento da santa Inquisição, Sua Santidade o papa tinha alguma ingerência na aplicação técnica desse castigo, ou como as demais práticas, o considerava um costume louvável, salutar?

É triste descer-se a tal nível, mas, a realidade é essa, onde o culpado, na época e agora, continua sendo quem denuncia tão grande depravação e o esgarçamento do tecido social de forma irreversível. Destarte, e por incrível que pareça os simpatizantes e adeptos do cristianismo, ao invés de chocados com tamanho descalabro, indubitávelmente sairão a campo desautorizando a informação, achando-a agressiva a uma doutrina santa, e algo totalmente fora de propósito na atualidade. Isso tem sido assim, e na impossibilidade de utilizar-se da crueldade e intolerância, assim como o fizeram Clemente XI e Clemente XII matando a Gaetano Volpini e Enrico Trivelli por motivos fúteis, apenas dão de ombros misturando imprecações com jaculatórias. Uau!



NOTA: Esse ensaio faz parte do Volume III (ANATOMIA DE UMA FARSA, 596 páginas) da trilogia: JESUS E O CRISTIANISMO, a venda através do email: josepereiragondim@hotmail.com