segunda-feira, 22 de agosto de 2011

LUPUS ET AGNUS, NÃO... LOBO VERSUS LOBOS!




O futuro nunca foi obra do destino, uma vez ser moldado no dia-a-dia de cada um, representando um somatório de erros e acertos pela vida. No ensaio presente são confrontadas as trajetórias de dois homens públicos, dentro duma premissa sobejamente torta mas real, onde e sem sombra de dúvida: a ocasião faz o ladrão, sim senhor! Para este Autor, Pierre Clergue não é vítima, tão pouco mártir do cristianismo, ou de qualquer coisa nessa vida. Ele, simplesmente foi um homem depravado que não conseguiu (talvez nem tenha tentado) controlar, ou mesmo conter a personalidade monstruosa que trazia consigo. Quiçá, não desautorizou o lobo voraz que lhe atormentava as longas noites em claro, ameaçando com veemência abandonar a pele de cordeiro, e como todo predador ir à caça. Afora as questões íntimas era um bom conselheiro e cidadão exemplar; magro e de boa estatura, bem afeiçoado e fluente, procedente de uma família tradicional e pároco na aldeia de Montaillou, na região do Longuedoc, na França do século XIV, em plena escuridão da Idade Média. Envolvido com paroquianas, no desempenho das tarefas inerentes a tão importante cargo pressentiu de repente, que o sexo estava em todo lugar, principalmente no seu corpo, e que pretendia proporcionar àquelas ovelhas desgarradas ou não, algo mais que o gozo celestial, ou resumindo: uma boa dose de prazer carnal

O celibato que lhe fora imposto pela Igreja além de nocivo ao organismo humano castrava de forma perversa a única oportunidade que o homem tem de chegar a deus (a divindade é amor), que é pela fusão dos sexos, pela entrega total entre um homem e uma mulher. Na condição de um bom herege, pois embora um padre católico comungava dos preceitos albingenses, Pierre não conseguiu um outro catalizador (até porque não existe) para o imponderável turbilhão de hormônios que revolucionava seu corpo jovem. E aí foi à luta, não houve jeito, transformando-se de um manso pastor, num caçador impiedoso, no precursor do personagem gaiato e atualmente conhecido como “abatedor de lebres”. O sexo reprimido por um longo período veio à tona numa enxurrada violenta e o sacerdote perdeu o controle sobre si, talvez de forma premeditada, deflorando adolescentes em celeiros, sobre o feno, ou transformando igreja e sacristia no “motel” dos seus sonhos. 

Na perseguição e chacina dos cátaros a conduta do padre Clergue veio à “superfície”, inclusive com as ressalvas sobre pecado, a importância do segredo da confissão e o que era bom, ou pior para São Pedro, ou o próprio deus. Por ocasião da instalação do “santo” Ofício em Montaillou, algumas de suas amantes, como a viúva e castelã da aldeia, Beatrice de Planusole depois de muita ameaça e artifícios mirabolantes empregados pelos inquisidores forneceu detalhes sobre diálogos sórdidos, todavia, comuns nos encontros amorosos e às escondidas, entre pessoas sedentas pela libido. Depois de marchas e retrocessos o sacerdote foi encarcerado e faleceu misteriosamente no calabouço, em 1321. Enterrado como um cristão, todavia, em 1329 sua família foi obrigada a exumar-lhe os ossos que foram queimados numa fogueira inquisitorial, num autêntico caso de justiça póstuma em total respeito a uma lei reta de um deus justo, e de juízes terrenos em perfeita sintonia com os preceitos divinos. Pierre Clergue foi enfim punido ou justiçado, assim como manda a Santa Madre Igreja em seus ditames.

         Por ocasião do início do século XIV, a “santa” Inquisição seguia célere e altaneira fazendo vítimas, onde se fazia necessitar. Na maioria dos feudos os camponeses pouco entendiam dos rituais católicos, pois as missas eram rezadas numa língua que eles não falavam, enquanto os padres ordenavam tudo o que era pra ser feito. Para esses, que constituíam a grande maioria, a Igreja era simplesmente uma série de leis que eles tinham de obedecer e impostos para pagar, religiosamente, ou forçosamente? Nesse intervalo sofrido muitos sacerdotes ambiciosos pressentiram que poderiam fazer o próprio nome e fortuna, participando da Inquisição, na opinião deste Autor, uma espécie de multinacional da tortura, e desfrutando de suas benesses.
      
       Jacque Furnier, um religioso formado em Paris e ordenado bispo em 1317 foi um desses aventureiros privilegiados, além de metódico e oportunista ao extremo. Por tudo isso, e na perseguição de um grande objetivo reabriu a Inquisição em Montaillou, no período de 1318 a 1325, ou dez anos depois da primeira investida, com um olho no presente e a mente no futuro, seu e de sua Igreja. Uma vez que da prisão e interrogatório ninguém escapava, o padre Pierre Clergue, pessoalmente amedrontava suas vítimas com o fogo do inferno, caso revelassem aos inquisidores o relacionamento mantido com o mesmo, por ocasião de noites inolvidáveis, na sacristia e no interior da própria igreja. O inquisidor Furnier queria descobrir urgentemente a heresia, aliás, uma fixação doentia que obrigava a esses senhores procurarem chifre em cabeça de cavalo. Por isso fazia seus escribas anotarem todos os detalhes daquilo que diziam os aldeões que depunham e também fazia questão de interrogá-los sobre todos os aspectos de suas vidas. Se uma mulher amedrontada incorresse na fraqueza de relatar alguma intimidade, ou ocorrência de foro íntimo, aí ele se esmerava ao máximo no detalhamento da questão, satisfazendo, talvez um instinto mórbido guardado a chave no recôndito de sua mente podre. 

        O interrogado sofria misérias, a fim de contentar o perfeccionismo doentio de sua curiosidade, nesse caso totalmente particular e literalmente distanciada do universo em questão. No final dessa autêntica maratona e saciando a sua performance de um prendado torturador do corpo alheio e do espírito coletivo, o bom Furnier queimou na fogueira, apenas cinco infelizes inocentes. O padre Pierre Clergue foi enfim descoberto, preso como herege, e talvez se suicidou no cárcere. Conforme antecipado acima, seus ossos foram queimados numa fogueira redentora, ou justiçado à morte depois de morto, um fato bastante comum na intolerância da Inquisição. A condenação de Clergue por Furnier foi um caso típico do sujo e do enlameado. Dois anos antes desse acontecimento inusitado e lúgubre, ou seja, em 1327, Jacque Furnier tornou-se cardeal e, sete anos mais tarde foi eleito papa, tomando o nome de Bento XII. Aleluia irmão!

No entanto, na sua corrida cíclica a história da vida humana é uma autêntica caixa de surpresas, demonstrando não importa a que tempo, a hipocrisia e a verdadeira personalidade do homem perverso e degenerado, escondida sob mil disfarces, ou maquiada por espessa camada de cosméticos. No conceito deste Autor, e através do registro contido no trabalho de Jaime Brasil, História da Prostituição, fica claro que Pierre Clergue não era muito diferente de seu colega de batina e dedicado inquisidor, Jacque Furnier, congnominado mais tarde de Bento XII. A grande diferença que marcou a carreira desses abnegados sacerdotes da Igreja de Cristo na terra, é que o primeiro deslanchou no sexo ainda novo, na plenitude hormonal, enquanto o outro ingressou nessa seara na velhice, sob o fantasma ou os efeitos da andropausa. No quesito referente ao poder, ambos usufruíram do cargo, utilizando-se das prerrogativas do múnus na obtenção de favores, ou implementação de suas taras sexuais. Santa gandaia... [...] pois não existe outra definição! 

Qual dos dois foi mais lépido ou cínico, na quebra do celibato e no assédio às mulheres, o leitor poderá decidir calmamente, no entanto, no conceito deste Autor, Furnier foi alguns centímetros mais devasso, em face da idade, do método de ataque, da posição ocupada e da meninice da vítima escolhida. Talvez não valesse a pena analisar-se um epílogo tão asqueroso, entretanto, em se tratando de um registro histórico, não é justo tapar o sol com a peneira, crucificando apenas a miséria de Pierre Clergue, e ignorando a luxúria incontrolável de Jacque Furnier, em face a tiara papal e, principalmente, porque a Igreja nunca errou nem jamais errará, como a Escritura testifica. É muita petulância! Na qualidade de papa e representante de Cristo, ele, salvo um melhor juízo encarnava a Igreja Católica Apostólica Romana (e comportou-se vilmente), confira.

Segundo um relato de Jerônimo Squarciatico, o mais antigo biógrafo do poeta Petrarca: “Quando esse vate, juntamente com o irmão Gerardo e a jovem e bela Selvaggia residiam na cidade de Avinhão, durante o Cativeiro Babilônico da Igreja, Bento XII ocupava a cadeira pontifícia, ou a tiara papal. Um dia o papa deparou-se com essa menina de rara beleza e desejou ardentemente possuí-la (carnalmente). O papa encontrara os cofres da Entidade atulhados de dinheiro e outros valores, supondo dentro da lógica de um momento ilógico, que tudo nessa vida tinha um preço, cedendo, portanto ao poder do ouro. Posteriormente, Napoleão Bonaparte afirmou e a vida tem provado, ‘que todos são sensíveis a percentuais’. Bento XII convocou Petrarca, solicitou-lhe os favores da irmã prometendo em troca a função de cardeal. Mas o poeta indignado recusou a ignóbil oferta, respondendo que nunca aceitaria tal posto em troca da infâmia, repelindo a proposta papal como ofensa. Irritado com a negativa, o papa acionou a Inquisição e denunciou Petrarca, como herético. Antevendo o desfecho e na certeza de que o pontífice corrupto o condenaria à morte fugiu de Avinhão, recomendando insistentemente ao irmão, que vigiasse a querida Selvaggia. Todavia, o miserável Gerardo, não ficou insensível às grandes riquezas oferecidas por Sua Santidade e entregou-lhe a irmã. Uma noite, enquanto dormia foi transportada para o leito do papa; tinha apenas dezesseis anos... As lágrimas, os suspiros da virgem deram apenas como resultado excitar ainda mais a paixão do velho libertino. Selvaggia implorou piedade, mas em vão”

À vida desses degenerados e controvertidos pastores de deus e da Igreja, o Autor acrescenta a citação clara e oportuna do escritor e economista Ernest Mandel, Não foi o indivíduo que causou o desastre da classe, mas, antes, a classe que impediu o indivíduo de agir com êxito”.



NOTA: O ensaio acima faz parte do livro A Construção do Mito (540 páginas), Volume II da trilogia Jesus e o Cristianismo, a venda pelo email: josepereiragondim@hotmail.com  

O CRISTIANISMO E O FIM DO MUNDO




De conformidade com declarações dos velhos padres fundadores da Igreja primitiva, a doutrina cristã foi criada em cima dos supostos ensinamentos de Jesus contidos nos Evangelhos, ou centenas de trabalhos, obviamente pseudepigrafados nos séculos II e III EC. Durante o período, esses escritos foram produzidos em larga escala, por autores que se escudavam no anonimato, atingindo a marca imbatível de nada menos que 315 edições, providencialmente atribuídas a Pedro, Tiago, Judas, Maria Madalena e outros mais. Parece até que um pequeno segmento dessa sociedade foi acometido de um vírus endêmico e criador de textos divinos, com um tempo de incubação relativamente curto, ou menos de 2 séculos. Por ocasião do Concílio de Nicéia realizado no ano 325 passaram a constar da Bíblia católica as versões apresentadas em nome de Mateus, Marcos, Lucas e João, uma vez não ter havido unanimidade em se escolher uma única cópia. Nos comentários sobre os Evangelhos contidos nessa obra, o leitor tomará conhecimento da grande diversidade de autores, bem como o conteúdo de alguns, como dos Carpocratians, onde nada menos que a pederastia era enaltecida como um dom divino, na medida em que se fazia apologia ao homossexualismo. Ignorando isso tudo e apegados a certeza ruidosamente antecipada, fiéis contritos e seguidores aguerridos acreditavam piamente que Jesus era o filho de deus que veio à Terra libertar o homem do pecado através da morte na cruz, proporcionando o resgate da alma e a vida eterna. 

O próprio Cristo era enfático a esse respeito, conforme citação contida em Mc 8-36:37: “Pois que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder sua alma?” “Ou que daria o homem pelo resgate da sua alma?” A introdução de certa dose de ameaça ou vingança, mesmo numa proporção mínima era salutar aos objetivos perseguidos e Jesus não se furtava em fazê-lo, vejamos. Mc 8-38 “Porquanto, qualquer que, entre esta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos”. Por último, nada melhor que prometer uma vida nova num reino celeste, escapando de um mundo com data marcada para acabar. Por isso mesmo, observa-se nitidamente mais outra profecia nada confortável, no interior dos escritos pseudepigrafados em nome do legendário apóstolo Lucas (21-22, 27 e 31): “Porque dias de vingança são estes, para que se cumpram todas as coisas que estão escritas”. “E então verão vir o Filho do homem numa nuvem, com poder e grande glória”. “Assim também vós, quando virdes acontecer estas coisas, sabei que o reino de Deus está perto”.

Conforme salta aos olhos, os componentes indissociáveis dessa autêntica grife eram: a volta triunfal de Jesus, a chegada do paraíso para os bons (ou pobres), o castigo dos maus (ou ricos) através do fogo do inferno e a engenharia empregada na salvação da alma. Essa última, além de carro-chefe da Empresa era considerada o mapa da mina. Objetivando maior visibilidade do tema, inexoravelmente terá de proceder-se uma necropsia do assunto, microscopando-o demoradamente por partes. Inicialmente ver-se-á que a prevalência da alma sobre o corpo estava ligada a salvação da mesma, enquanto a existência do céu, inferno e purgatório era uma justificativa para outra vida após a morte. Durante séculos, senão milênios essa engrenagem foi azeitada nesse sentido, proporcionando riqueza e poder para os representantes da divindade na terra, pois afinal de contas ninguém é de ferro ou bronze e todos almejavam tranqüilidade e paz de espírito, obviamente com a graça de deus. Aleluia irmão! Mesmo de forma superficial, analisando-se o conteúdo dessas escrituras, consideradas de inspiração divina para os cristãos, qualquer pesquisador domingueiro verificará sem muito esforço que a salvação da alma e o fim do mundo eram peças indissociáveis de um grande projeto de convencimento e dominação.
 
Parece que os mentores da doutrina cristã esqueceram que a onisciência é o conhecimento prévio do futuro, e, se a divindade claudica e falha não informando correto, qual a outra fonte em que o homem deverá confiar? A apregoada e insistente mensagem de amor que norteia o conteúdo dos textos, inexoravelmente vem envolta em ameaças claras e um indisfarçável clima de medo, senão vingança. Vejamos, Luc 9-26:27: “Porque, qualquer que de mim e das minhas palavras se envergonhar, dele se envergonhará O Filho do homem, quando vier na sua glória, e na do Pai e dos santos anjos”. “E em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte até que vejam o reino de Deus”.  

Atualmente isso ainda causa um grande impacto na massa analfabeta e alienada por promessas de paraíso e o terror da danação do inferno. O leitor já imaginou essa receita horripilante imposta a uma sociedade ignorante, portadora duma cultura bitolada, totalmente desconhecedora do óbvio e privada de coisas elementares, como um nível de educação fundamental. Nessa corrida contra o tempo, a pressa era uma marca registrada da doutrina, pois claramente havia um período exíguo que seria utilizado entre a conversão do escravo, ou ex-cativo, a salvação da alma desse novo adepto e o fim de tudo. Mais uma vez os velhos padres colocavam lenha verde e besuntada nessa fogueira insana e terrível, que já não mais cabia no peito de seguidores fragilizados e diuturnamente bombardeados por tanto medo, vejamos. Mt 10-23: “Quando pois vos perseguirem nesta cidade, fugi para outra; porque em verdade vos digo que não acabareis de percorrer as cidades de Israel sem que venha o Filho do homem”

Além de um estrangeiro em sua vida, o ser humano era literalmente transformado em fugitivo de si próprio, enquanto um estigma de culpado em potencial colado a sua trajetória, roubava-lhe a tranqüilidade, a paz de espírito. Mesmo assim, ninguém parava, pensava e exigia qualquer tipo de explicação pra essa afirmação boba, pois as cidades, possivelmente já foram visitadas e percorridas trilhões de vezes, de norte a sul, de leste a oeste. Enquanto isso o Filho do homem ainda não deu as caras, quedou-se pensativo e decepcionado com sua imensurável impotência.

Os primeiros cristãos viviam passivamente à espera do fim do mundo, uma vez ser grande a persistência desse sentimento no seio das comunidades cristãs primitivas. Isso os transformava em fanáticos, alienados e intolerantes, pois ninguém consegue viver uma vida normal sob o clima de ameaças e medo, ou com a “espada de Dâmocles” sobre a cabeça. Esse sentimento era generalizado no século I de nossa Era e explica a indiferença mostrada por eles em relação às questões puramente teológicas. Se o apocalipse está próximo, é mais à fé ardente do que às obras e aos dogmas que tudo deve ser consagrado. Até Clemente e Tertuliano, durante mais de um século, a literatura cristã não se interessou pelos problemas de teologia e não se aperfeiçoou em relação às obras. Ainda no fim do século IV, um bispo na África pró-consular calculava que restavam apenas 101 anos de vida no mundo. Ao fim desse tempo viria o reino dos céus, que era preciso merecer sem tardança. Nascem então a devoção e o catecismo. A Igreja deu um corpo a essa fé, que nada mais era do que uma tensão no sentido do reino vindouro. 

Mas, a partir do instante em que o “fim do mundo” se distancia, é preciso viver com a sua fé, isto é, fazer concessões. Mesmo assim a promessa do paraíso era reavivada com insistência, enquanto a data do fim de tudo estava atrelada ao transcorrer, ou esgotar-se de uma geração, vejamos. Mt 12-27:28 “E, se eu expulso os demônios por Belzebu, por quem os expulsam então vossos filhos? Portanto eles mesmos serão os vossos juízes. Mas, se eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus, é conseguintemente chegado a vós o reino de Deus”. Continuando com a diatribe de sempre, Mt 24-34 “Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam”. Enquanto isso não chegava, ou acontecia, a Igreja controlava com mão de ferro o monopólio do céu, inferno e purgatório, departamentos emblemáticos somente liberados após a morte de um seguidor crédulo. Em termos sensoriais a alma deveria ser infinitamente mais sensível ao sofrimento do que o corpo, daí o medo das penitências do purgatório, bem como a danação do fogo infernal. Nesse período sofrido da história da civilização, a sociedade era refém do sofrimento, enquanto a salvação da alma era o mapa do tesouro, no que tange a submissão da massa e a obtenção de recursos materiais. Num momento só, a mente e o bolso do fiel seguidor eram jungidos aos ditames duma religião, indistintamente, inapelavelmente!

O desprezo pela riqueza e uma injustificável apologia a pobreza estavam relacionadas a questões ligadas à educação, ao esclarecimento. O homem instruído é fatalmente imune a alienação, pois a sua base de conhecimento lhe faculta a argumentação, o direito a dúvida sobre isso ou aquilo, um detalhe inexistente no seio da massa ignorante. Quando o ser humano questionava o status quo avançava nos degráus da vida, libertando-se da luta inglória cujo objetivo único era o saciar momentâneo da fome da barriga. Isto não era bem visto pelos poderosos, pois um deslocamento na escala do conhecimento era um sinal de perigo para quem manda, ou dita às normas. Ser rico não era um bom sinal, e a esse respeito o Cristo era contundente, vejamos. Mt 5-3 “Bem aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”. Ou Mt 19-23:24 “Disse então Jesus aos seus discípulos: Em verdade vos digo que é difícil entrar um rico no reino dos céus”. Ou mais esta ainda: “E outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo duma agulha do que entrar um rico no reino de Deus”.

Analisando rapidamente essa fixação doentia na miséria, qualquer observador desinteressado ou distanciado do assunto, nota que certa dose de precaução, melhor dizendo, medo, transformava a condição de rico em ofensa grave senão pecado mortal, dentro duma realidade onde o nivelamento das classes ocorria por baixo. Em consonância a essa aberração, por ocasião do sermão da montanha, entre outras coisas Jesus adiantou, o seguinte. Mt 6-34 “Não vos inquieteis pois pelo dia d´amanhã, porque o dia d´amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal”. Entretanto, através do raciocínio mais acanhado, o futuro é a projeção do presente, onde o homem de forma responsável cria uma situação estável para si e os seus, ou irresponsavelmente desmata, ou cava uma trilha de infortúnios e desgraças para si e sua descendência. Portanto, e sem margem para dúvidas, o homem honesto tem um compromisso com a vida e com o amanhã, diligentemente construído dentro da preocupação do dia de hoje e ponto.

Atacando em outro flanco, e desta feita, através da verbosidade ou pseudepigrafia atribuída a Paulo de Tarso, um demiurgo extremamente simpático aos horrores da escravidão, exorta os cativos a abençoarem o chicote que lhes dilacerava as costas, bem como toda sorte de sofrimentos e privações advindos desse regime miserável e cruel. A fim de se evitar dúvidas, o Autor antecipa esse afago de primeira, contido em: I Timóteo 6 - "Todos os servos que estão debaixo do jugo estimem os seus senhores por dignos de toda a honra, para que o nome de deus e a doutrina não sejam blasfemados". Recorrendo-se a lógica mais primitiva, o mais acertado nesse processo seria uma total condenação ao regime escravagista, e não, o posicionamento hipócrita e contemporizador de um deus eminentemente escravocrata. No entanto, o cristianismo se estabelecera em Roma e o mais importante no momento era tranqüilizar os poderosos e senhores de escravos. A consciência de que a doutrina pouco se lixava com a sorte dos cativos, exortando-os a suportarem o jugo, abençoando os "patrões" era um "sossega leão" de primeira, a certeza antecipada de que as grandes modificações propostas pela nova seita eram assestadas unicamente em torno da vida após a morte. Os senhores ricos e agora parceiros no poder podiam dormir sossegados, pois a administração do céu e do inferno era o objetivo maior, pelo menos por enquanto. Aleluia irmão!

Debruçando-se sobre o cadinho efervescente compreendido entre o final do período Asmoneu e os primeiros séculos da Era Comum, qualquer pesquisador apressado, constatará sem muito esforço que um clima de misticismo prevalecia nessa parte do Oriente Médio, contaminando grande parte da massa através de um fanatismo palpável. Ao contrário de gregos, chineses e indianos que procuravam explicar a vida e a evolução do homem no planeta, pseudos visionários se elegiam messias, uma espécie de escolhido da divindade passando a pregar o caos, o fim do mundo e o recomeço de tudo num paraíso, exclusivamente reservado aos escolhidos. Por medida de segurança, ou por vias das dúvidas esse ambiente era localizado fora da Terra e inacessível aos vivos. Imagine o leitor o tamanho dessa malandragem! Lérias! Por tudo isso e muito mais do que se possa imaginar, foi justamente nesse ambiente confuso, senão promíscuo que vários homens se autodenominaram ou reconheceram-se messias, arregimentando seguidores e alvoroçando as comunidades com profecias e presságios aterrorizantes, ao médio ou curto prazo. A fixação no fim do mundo era o sinal evidente e palpável da radicalização de um tema, através de pessoas intolerantes e indisfarçadamente reacionárias. 

Como um produto genuíno dessa época, os Evangelhos estão eivados de citações sobre o assunto, as quais, infelizmente, apesar da inspiração divina garantida continuam no ritmo de espera, tal e qual as famigeradas filas Oficiais de transplante de coração, fígado e outros órgãos. Nessas relações pomposas e monumentais, os inscritos, na maioria das vezes chegam a avançar, mais em função da morte dos primeiros da lista, do que pelo número de pessoas transplantadas. Uma sobrinha deste Autor extremamente carente de um fígado íntegro chegou a figurar no 14º lugar, todavia, não resistiu à longa espera. Nessas alturas, o 15º colocado avançou mais uma casa, não em função de uma cirurgia bem sucedida; mas em face de outra morte, como certamente ocorrerá consigo. Essa é a realidade do mundo paupérrimo, mesmo daqueles que ojerizam a miséria e a pobreza, independente dessa mazela ser uma condição sine qua nom, para o ingresso no reino de deus. Literalmente fora de qualquer conceito encomendado, a expressão reino dos céus, ou de deus está intrinsecamente ligada à fortuna, riqueza, felicidade, bem estar e outros vocábulos congêneres. Enquanto isso, inferno é miséria, pobreza, dificuldade, falta de trabalho, de saúde, de educação, de oportunidades dignas e de pão na mesa. Não há outro jeito, pois a regra é essa, e ditada por um deus justo, dentro de um projeto lógico.

Enveredando pelo lado essencialmente místico, e bastante comum na época e nesse local do planeta, o cristianismo foi um rebento a altura desse legado, confundindo a sociedade em algumas civilizações na antiguidade, com um verdadeiro processo de exaltação a impossibilidade. Vejamos alguns produtos desse período, embutidos no interior dos ensinamentos de Jesus. Mt 12-40: “Pois, como Jonas esteve três dias e três noites no ventre da baleia, assim estará o Filho do homem três dias e três noites no seio da terra”. Ou mais estas: Mt 24:37 e Lc 17:26: "E, como aconteceu nos dias de Noé, assim será também nos dias do filho do homem. Comiam, bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca, e veio o dilúvio, e os consumiu a todos". Mesmo ignorando as dimensões da garganta e do esôfago duma baleia ou outro grande peixe, a possibilidade de se engolir um homem, ou outro animal do seu tamanho, sem fraturas ou retalhamento é simplesmente impossível. Aliás, a ausência de oxigênio e a ação dos ácidos empregados no processo digestivo impedem qualquer possibilidade de vida no estômago ou intestino do predador, mormente após três dias. Nesse caso a vontade ou inspiração divina direcionada à produção de milagres soçobrou fragorosamente na mitologia, ou algum transporte extraterrestre totalmente desconhecido de integrantes de comunidades primitivas. Quem pode garantir que esse peixe não era um engenho náutico, ou mesmo um sonho que o profeta traduzia para o mundo real, por que não? Quanto aos relatos concernentes ao dilúvio e a Noé, em particular, qualquer demiurgo obviamente dotado de onisciência teria conhecimento pleno de que essas narrações eram de origem alegórica, ficcional e criadas nas várias civilizações da antiguidade. Nada, portanto de verdadeiro.

De forma antecipada e providencial os livros ditos sagrados foram blindados pelo artifício da “inspiração divina”, e a partir desse momento jamais poderiam ser questionados em qualquer aspecto ou sob nenhum pretexto, uma vez que isso representava uma grave ofensa à divindade. A hermenêutica foi acionada na salvaguarda das conveniências, enquanto o conceito de geração, ou qualquer outro vocábulo utilizado na redação de uma profecia poderia muito bem fugir ao entendimento do homem, mas estava perfeitamente consonante com a vontade de deus, pois seguro morreu de velho. Essa regra permaneceu intocável por milênios! O economista e filósofo alemão, Karl Marx, reconheceu que de nada adiantava polemizar com religiosos e que a religião era fruto da tirania a que o homem estava submetido pela organização da sociedade. A alienação é tal, que Marx a compara àquela que acomete os viciados em ópio, que embotam os sentidos para fugir da miséria e de onde retirou uma lógica meridiana: "a religião é o ópio do povo". Suas observações oportunas subsidiaram a compreensão da realidade social, econômica e política, uma vez que entender evita a alienação, proporcionando a paz ansiada pela maioria.

Obviamente, a vida no planeta acabará um dia, no entanto, pela agressão ambiental cotidiana, pela exaustão dos recursos naturais ou pelo choque com algum asteróide em sua viagem cósmica. Por tudo isso, este Autor lamenta o oportunismo da religião e o fiasco de suas profecias concernentes ao fim da existência na Terra. Nesses termos, um messias filho de deus, altamente desinformado adianta para consumo dos tolos, algo sobre o qual ele não tem o menor conhecimento. Isso seria risível se não fosse grotesco, vejamos. (Mc 13:30) Na verdade vos digo que não passará esta geração, sem que todas estas coisas aconteçam. Se o cristianismo não fosse a religião com maior número de adeptos no mundo, se a maioria dos teólogos e pesquisadores não tivesse uma formação religiosa rígida que se propaga por gerações contínuas, essa fraude já teria sido desmascarada desde muito.

Assim, como o aviso atrevido sobre vendas a crédito (fiado só amanhã), contido em bodegas e bares de subúrbio, ou cidades pequenas e de interior, o fim do mundo apregoado nos Evangelhos e na intolerância dos pregadores cristãos voluntariamente foi assumindo um lugar numa dessas placas, e o Cronista pode viver com mais liberdade. De repente, quando a lembrança vem a sua mente, normalmente uma plaquinha de fiado, substitui aquela do fim do mundo, e uma coisa fica pela outra, afinal, o mundo acabará, só amanhã! Enquanto esse fim não chegava, um Cristo sonolento repetia em Lc 21:32:“Em verdade vos digo que não passará esta geração até que tudo aconteça”. Ei...! Mas já passaram muitas gerações, companheiro! Foi aí que um Jesus furioso esbravejou: Jo. 10:8 “Todos quantos vieram antes de mim são ladrões e bandidos...”. Essa não, camarada, eu já ouvi essa loa em algum lugar, vejamos. Eleito deputado em 1986, com a maior votação da história republicana, o ex-presidente Lula alertava não haver chances de salvação para os brasileiros que gravitassem além das fronteiras do Partido. "Quem não era filiado ao PT, que detinha o monopólio da ética era inimigo do povo, quem não votava na seita era cúplice de bandidos disfarçados de pais da pátria. Se o Brasil fosse um país sério, vociferava furibundo, todos estariam na cadeia". Pelo menos esse é real, e não tem medo de ser feliz! AMÉM!


NOTA: Esse ensaio faz parte do livro "A Construção do Mito" (540 páginas), ou Volume II da trilogia Jesus e o Cristianismo, a venda pelo email josepereiragondim@hotmail.com